50 anos do golpe militar que depôs o presidente João Goulart
para dar início à ditadura militar, um período de graves violações de
direitos humanos e sociais. Cinco décadas passadas, será que a sociedade
brasileira conseguiu estabelecer de fato uma democracia? Quais são os
resquícios desse período na história atual? É o que analisa Dulce
Pandolfi, socióloga, doutora em História e ex-diretora do Ibase, no
texto abaixo, gentilmente cedido ao Canal Ibase. Para falar do assunto,
ela traz à tona acontecimentos recentes, como a morte de Cláudia
Ferreira, moradora de Madureira. Dulce apresenta-se de um duplo lugar de
fala, enquanto historiadora e, ao mesmo tempo, vítima do Estado
implantado pela ditadura iniciada em 1964. O texto foi elaborado para a
conferência inaugural no Seminário sobre os 50 anos do Golpe, organizado
pela Biblioteca Nacional.
No ano passado, a historiadora deu depoimento à Comissão da Verdade
do Rio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), no qual chocou o país
ao
contar que havia sido torturada até com o uso de jacarés. E, além disso,
trouxe à tona reflexões importantes sobre os resquícios da ditadura na sociedade brasileira atual,
afirmando, em entrevista: “ Muitas formas de torturas ainda existem no
país, como, por exemplo, no sistema carcerário e em comunidades. E a
população não se mobiliza, encara como natural.”
|
Dulce Pandolfi |
O que mais interessa discutir aqui é como se chegou à Lei de
Anistia e qual o seu sentido para a sociedade brasileira. Qual a
diferença entre perdão e esquecimento? Por que, diferentemente de outros
países da América Latina, o Brasil não julgou criminalmente os seus
torturadores? É possível sermos um país mais justo e democrático se
esquecermos o nosso passado ditatorial? Por que a tortura, que existe
desde tempos mais remotos e que não foi uma invenção da ditadura,
continua sendo utilizada até os dias de hoje no nosso país, um país onde
vigora um regime democrático, ainda que com muitas imperfeições?
Não por acaso – tortura e anistia – estão na ordem do dia. Dois
acontecimentos recentes, talvez exemplares, podem ajudar na reflexão que
estou tentando aqui fazer sobre o passado e o presente. Em primeiro
lugar remeto ao depoimento do coronel Paulo Malhães na Comissão da
Verdade do Rio de Janeiro e que foi publicado, em parte, no jornal O
Globo no último dia 16/3/2014. Ao assumir a responsabilidade pelo
desaparecimento do então deputado federal Rubens Paiva, preso em sua
residência no Rio de Janeiro em janeiro de 1971 e cujo corpo até hoje
não foi encontrado, o torturador Paulo Malhães, de forma didática,
explicou porque, no período da ditadura, era melhor desaparecer com os
inimigos do que simplesmente matá-los. Diz ele: “O desaparecimento é
mais importante do que a morte porque causa incerteza no inimigo. Quando
um companheiro morre, o guerrilheiro lamenta, mas acaba esquecendo. Não
é como o desaparecimento que gera uma expectativa eterna”. Prossegue
ele: “nada fiz além de cumprir meu dever. Se precisasse faria tudo de
novo. Foi tudo racionalizado. Se precisar novamente, estou preparado.
Tenho 76 anos, mas ainda posso dar instrução aos mais jovens”. Qual o
sentimento que essa fala do torturador Paulo Malhães produz em todos
nós, nos perseguidos pela ditadura, nos familiares não só de Rubens
Paiva, mas nos familiares de todos os desaparecidos do país?
Por que é possível Paulo Malhães falar com tamanha naturalidade e
audácia sobre crimes considerados de lesa humanidade e ainda afirmar que
se preciso, fará tudo de novo? Esse torturador não deve ser processado e
julgado pelos crimes que cometeu? O Estado brasileiro o anistiou?
Enfim, qual o impacto que esse e outros depoimentos similares irão
produzir na sociedade brasileira? Em segundo lugar remeto, a outro caso
também recente e igualmente “estarrecedor, nefando, inominável, infame”
como bem descreveu José Miguel Wisnik na sua forte e bela crônica
publicada no jornal O Globo, no último sábado, dia 26 de março: o de
Claudia Silva Ferreira, baleada no Morro da Congonha, no Rio de Janeiro,
em circunstâncias ainda não esclarecidas. Jogada como carga no
porta-malas de um carro policial a pretexto de ser atendida, Claudia foi
“arrastada à morte, a céu aberto, pelo asfalto no Rio”. Prossegue
Wisnik: “É uma imagem verdadeiramente surreal, não porque seja esteja
fora da realidade, mas porque destampa (…) uma cena recalcada da
consciência nacional, com tudo o que tem de violência naturalizada e
corriqueira, tratamento degradante dado aos pobres, estupidez elevada ao
cúmulo, ignorância bruta transformada em trapalhada transcendental,
além de um índice grotesco de métodos de camuflagem e desaparição das
pessoas”.
Como disse a filha de Cláudia, em entrevista a uma emissora de
televisão, “nem cachorro mereceria o tratamento que deram para minha
mãe”. Nunca é demais lembrar que um dos policiais que continuava fazendo
seu trabalho de rotina, e que deu a Claudia um “tratamento que nem um
cachorro merece”, já tinha anotado na sua ficha profissional a
responsabilidade pela morte de treze pessoas. Esses dois casos são
reveladores sobre o Brasil de hoje, e se tornam um bom prólogo para
tecer algumas considerações sobre o “presente do passado”. Sabemos que o
regime implantado com o golpe de 1964 que destituiu João Goulart da
presidência da República teve várias facetas e muitas especificidades.
Até hoje vencidos e vencedores disputam a memória sobre o ocorrido. A
disputa começa pelo nome: aquilo foi um golpe, uma revolução ou uma
contrarrevolução?
Um divisor de águas na história do país, o golpe de 64 também foi um
divisor de águas na minha vida. Em Recife, minha terra natal, eu com 14
anos de idade, era uma entusiasta do governo Jango. Pernambuco era, no
pré-64, talvez o estado mais comprometido com as tais reformas de base
que tanto me fascinavam. Miguel Arraes, Francisco Julião, Gregório
Bezerra, Pelópidas Silveira, Paulo Freire, as Ligas Camponesas, a
Reforma Agrária, o Movimento de Cultura Popular, a Campanha de
Alfabetização de Adultos, povoavam a minha imaginação. Minha casa era um
local de muitos debates. Meu pai fazia parte de um grupo que se reunia
nos finais de semana para discutir, arte, literatura, filosofia e
política. Minha mãe, apesar de neta e filha de senhor de engenho era uma
solidariedade só. Costumava dizer que a principal função do dinheiro
era ajudar os mais necessitados.
Nos dias que antecederam o golpe, o clima visivelmente tenso. Mas,
para mim, tudo parecia muito sólido. Por isso, no dia do golpe, meu
mundo caiu. Tudo o que parecia tão sólido rapidamente se desmanchou no
ar. Lembro do corre-corre, dos livros sendo queimados, dos estudantes
baleados, do líder comunista Gregório Bezerra com uma corda no pescoço,
sendo arrastado pelas ruas do meu bairro, pelo coronel Villocq Viana, um
dos comandantes da Sétima Região Militar, em uma jipe do Exército
brasileiro, recebendo dos militares “um tratamento que nem um cachorro
merece”. Esse espetáculo ocorreu no dia 2 de abril de 1964. Logo depois
do golpe, muitas também eram as notícias sobre as torturas e os
desaparecimentos de inúmeros trabalhadores rurais da zona da mata de
Pernambuco, inimigos mortais do regime militar, em função da projeção
política que haviam conquistado no governo Jango que tinha como uma das
suas principais bandeiras a reforma agrária. Sobre esses trabalhadores
até hoje pouco se sabe. Em 1964 muitos não tinham nem documento. Embora
atores importantes do processo, eram pré-cidadãos. De fato, o golpe
pegou quase todo mundo de surpresa. Lembro também da véspera do golpe.
Nós éramos vizinhos e amigos do então prefeito de Recife, Pelópidas
Silveira. No dia 31 de março, antes de irmos para o colégio, meu pai
preocupado com o clima político, teve uma rápida conversa com Pelópidas,
no portão da casa dele. Ele nós tranqüilizou. Sabia que o comandante do
IV Exército, Justino Alves Bastos, estava do nosso lado. No dia
seguinte, tanto Pelópidas, como Arraes estavam presos e depostos dos
cargos de prefeito e governador.
Só anos mais tarde entendi o porquê daquele otimismo. Segundo as
análises do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que na época era uma
força política importante, havia no Brasil uma contradição principal
entre, de um lado, as forças do atraso, presentadas pelo latifúndio,
apoiado pelo imperialismo, e do outro lado a tal da burguesia nacional,
apoiada pelos setores da classe média e pelos trabalhadores. Juntos, em
aliança, ajudariam o Brasil a sair do estágio pré-capitalista e se
tornar um país capitalista. Completando o quadro, avaliava-se que
setores expressivos das Forças Armadas, por pertencer à média ou à
pequena burguesia, também estavam do lado do progresso e, portanto,
alinhadas com Jango. Talvez por isso, o dirigente comunista Gregório
Bezerra, no dia 1 de abril, ao chegar perto da sede do governo, em busca
de apoio para tentar barrar o golpe que estava em curso, ao ver a sede
toda cercada por policiais, escreveu ele, “fiquei animado, vendo muitos
soldados da Polícia Militar limpando e lubrificando fuzis e
metralhadoras. Pensei que estavam preparando-se para resisir aos
golpistas!”
Poucas horas depois, Gregório, preso e torturado, estava sendo
exibido publicamente pelos militares, como uma espécie de troféu de
guerra. Aquela exposição pública de Gregório parecia querer demonstrar
não só que eles, os militares, tinham vencido a guerra, mas também que o
tratamento dos inimigos, no pós-guerra, ia ser pesado. Ao longo do
período ditatorial, a despeito da intensidade, da modalidade e até mesmo
da visibilidade ter variado, a tortura, a morte e o desaparecimento
foram práticas adotadas pelo regime, como uma política de Estado. Por
isso, no depoimento que dei à Comissão da Verdade, eu acusei os ex
presidentes da República Humberto Castelo Branco, Costa e Silva,
Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo. A despeito
das divergências entre eles e das diferentes conjunturas em que
chefiaram o país, todos, sem exceção, foram coniventes e responsáveis
pela tortura.
Mas, a questão que fica é saber qual a memória que a sociedade
brasileira construiu sobre a ditadura e mais particularmente sobre a
tortura. Sem dúvida, há uma disputa de memórias. Ainda que de forma
esquemática, gostaria de mencionar duas. De um lado, apesar das suas
diferenças, a nossa visão, a visão dos militantes. Do outro lado, a
visão dos militares e dos seus aliados civis, também com suas
diferenças. Infelizmente essa ainda bastante cristalizada na nossa
sociedade.
Leia o documento na íntegra
Fonte: Canal Ibase