domingo, 13 de abril de 2025

Carta de João Pessoa - 9º. Encontro de Comitês e Comissões de Memória, Verdade e Justiça do Norte-Nordeste



CARTA DE JOÃO PESSOA


Com medo aprendi o ofício
de armazenar as palavras como em um frigorífico
[...]
as palavras que não escrevo
habitam líquidas o fundo do meu medo

Sérgio de Castro Pinto
Sobre o medo (1977) As palavras que não escrevo (1972)

Reunidos no estado da Paraíba, onde resistiram e tombaram contra a ditadura e a favor de bandeiras como direitos humanos e socialismo:

Adauto Freire da Cruz
Dilermano Mello do Nascimento
Ezequias Bezerra da Rocha
Humberto de Albuquerque Câmara Neto
 João Alfredo Dias
João Pedro Teixeira
João Roberto Borges de Souza
 José Maria Ferreira da Araújo
 Luiz Alberto de Sá e Benevides
Marcos Antônio da Silva Lima
Margarida Maria Alves
Pedro Inácio de Araújo
 Severino Elias de Mello
E centenas de mártires da luta camponesa que enfrentaram a tirania em busca de um mundo melhor, pleno de justiça social e igualdade entre todos os povos.

O 9o Encontro de Comitês e Comissões de Memória, Verdade e Justiça do Norte e Nordeste, após produtivos e profundos debates em defesa da justiça de transição, reafirma o nosso compromisso com o legado de Elizabeth Altina Teixeira, líder camponesa, mulher centenária que nos ensina a continuar na luta, construindo a memória coletiva dos homens e mulheres que ao longo dos anos resiste às inúmeras tentativas de implantação de um Estado fascista em nosso país.

Reafirmamos a necessidade da criação e instituição de um órgão de estado com a finalidade de fazer cumprir as recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) já postas desde 2014, visto que a impunidade gera a repetição das velhas práticas e mostram a face mais explícita e sem pudores do sistema capitalista. É consenso que a falta da aplicação dessas recomendações é condição fundamental para a viabilidade dos eventos ocorridos em 8 de janeiro de 2023 no qual golpistas, com apoio das Forças Armadas, tentaram solapar a ainda frágil democracia brasileira. Assim sendo, exigimos punição exemplar e rigorosa a todos os golpistas, sejam executores, financiadores, apoiadores e participantes dessa intentona fascista.

Repudiamos o persistente genocídio da população pobre, negra e periférica perpetrado pelas forças policiais estaduais, aparato que mantém a sua herança ditatorial, servindo como força auxiliar das Forças Armadas e compartilhando com ela a função de combate ao inimigo interno. Também repudiamos as constantes ameaças e assassinatos aos povos originários e a violência continuada contra trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo, também um padrão mantido e aprofundado pela Ditadura e preservado após a redemocratização. Denunciamos que, movidos pela certeza da impunidade, agentes do Estado continuam praticando torturas em delegacias, presídios e outras tantas instituições públicas, assim como nas ruas, vielas e terrenos baldios das periferias. Exigimos das Forças Armadas não um pedido oficial de desculpas à nação brasileira, mas, principalmente, que seja levado a cabo uma reforma militar que acabe com a velha doutrina da ditadura e revogados os entulhos autoritários dentro das corporações militares.

O cenário de comodidade institucional da extrema direita é patente e se manifesta de várias formas, uma delas é a perseguição e tentativa de cassação de mandatos como os dos companheiros Glauber Braga (Psol) e Renato Freitas (PT), processos postos em curso e que não são devidamente combatidos de modo contundente e aberto pelo conjunto do campo governista.

Não deixemos de mencionar o caráter fascista do cenário internacional com o avanço de partidos de extrema direita na Europa. É preciso também enfatizar a empreitada colonial e genocida – endossada e alimentada pelo imperialismo estadunidense – que o Estado nazifascista de Israel tem posto em curso, sob o pretexto de combater o terrorismo, repetindo o Nakba (Catástrofe), ocorrido em 1948, quando o povo palestino teve suas propriedades e meios de sobrevivência expropriados pela força das armas para a implantação do Estado de Israel. Em ambas ocasiões, foram processos marcados pela violação de direitos humanos e inação intencional do conjunto de governos nacionais e instituições internacionais.

Consideramos inaceitável o Supremo Tribunal Federal (STF) não ter realizado a reinterpretação da Lei da Anistia (1979). A revisão e reinterpretação é necessária para que haja possibilidade de resolver a dívida para com a sociedade brasileira, estabelecendo um avanço real rumo à justiça efetiva para com as vítimas e familiares das vítimas das violações sistemáticas de direitos realizadas por torturadores e assassinos do Estado militar fascista ocorrido no Brasil. A manutenção da interpretação em vigor da Lei de Anistia é condição que alimenta a reprodução da tutela militar da democracia brasileira, possibilitando que mesmo depois de mais de 30 anos de abertura democrática um conjunto de oficiais militares e setores das Forças Armadas se mobilizem para intervir diretamente na regularidade democrática, como em casos de endosso a movimentações, articulações e falas públicas de seus oficiais sobre a confiabilidade dos processos eleitorais, ou mesmo no caso de insinuações públicas ameaçando com possíveis reações ante resultados de decisões judiciais do STF. Diante desse cenário, reconhece-se que o Ministro Flávio Dino (STF) tenha se manifestado quanto ao entendimento que, entre outras violações e crime praticados, a ocultação de cadáver não pode ser considerada passível de prescrição tampouco de esquecimento, mas ainda consideramos um passo muito tímido em direção à consolidação da necessária justiça de transição, dada a importância da temática.

Reiteramos que não possibilidade de falar em superação do legado da Ditadura e em uma experiência democrática plena quando há, de modo sistemático, a violação de direitos humanos e na qual setores da sociedade sejam sistematicamente mantidos fora do acesso a direitos sociais, políticos e civis efetivos. Esse entendimento conclama a uma união contra as sistemáticas violações de direitos humanos dirigidas às populações em situação de rua, à tentativa reiterada e secular de extermínio dos povos originários e das populações negras, de trabalhadores na cidade e no campo, contra os crimes e a violência contra a população LGBTQIAPN+. Exigimos a apuração dos crimes cometidos desde o golpe de 1964, 2016, a intentona fascista de 2023, até os dias atuais, incluindo os desaparecimentos forçados, as torturas e execuções sumárias realizadas pelas forças policiais e os crimes cometidos no que se refere ao combate à Covid-19 e gestão da pandemia no Brasil.

O 9o Encontro de Comitês e Comissões de Memória, Verdade e Justiça do Norte e Nordeste

gerou 5 Grupos de Trabalho (GT’s), chegando às seguintes deliberações:

GT 1 INSTRUMENTOS PARA REPARAÇÃO DA MEMÓRIA: MEMORIAIS, AMPLIAÇÃO DE ACERVOS E SUSTENTABILIDADE DOS ARQUIVOS PÚBLICOS

  1. Fomentar a organização e preservação dos acervos da ditadura, por muito tempo relegados ao descaso com destruição proposital dos documentos;

  2. Necessidade de mobilização da sociedade civil e de organizações como ANPUH (Associação Nacional de História) em defesa da valorização dos arquivos da ditadura;

  3. Garantir que estes sejam espaços do fortalecimento da democracia, através da criação, desenvolvimento e êxito das Comissões da Verdade em cada Universidade;

  4. Utilizar as ferramentas da Tecnologia da Informação e das redes sociais para ampliar o acesso aos documentos da repressão e da resistência, fomentando o conhecimento e o debate sobre o que significa um estado fascista;

  5. Criação, difusão e propaganda de Memoriais da Democracia e Museus, ferramentas essenciais para avançar a luta em defesa de uma política de memória de Estado.

GT 2 COMISSÕES DA VERDADE E AS SUAS RECOMENDAÇÕES: O QUE SE CONCRETIZOU APÓS ENTREGA DOS RELATÓRIOS?

  1. Acesso aos arquivos como garantia de direitos humanos e a importância de uma política arquivística;

  2. Ressaltar a importância do cumprimento da lei de acesso à informação (Lei Nº 12.527/2011) e a abertura dos arquivos militares e os documentos de informação dos seus órgãos;

  3. Articular a criação de leis que regulamentam a mudança de nomes de logradouros que homenageiam torturadores, golpistas e fascistas; proíbam a nomeação e homenagens aos mesmos;

  4. Acompanhar junto aos órgãos competentes o cumprimento de leis que determinam a ressignificação de logradouros públicos com nomes de agentes da ditadura, existentes na Paraíba e em outros estados;

  5. Construir um mapa das Comissões de memória, verdade, justiça e reparação, identificando estados, municípios, universidades e entidades sindicais que ainda não possuem suas Comissões, fortalecendo as já existentes em caráter permanente em Estados e Municípios;

  6. Elaborar materiais como livros e relatórios com o tema em formato simples, acessível e pedagógico para as escolas;

  7. Articular a criação da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos em níveis estadual e municipal.

GT 3 REINTERPRETAÇÃO DA LEI DE ANISTIA E MECANISMOS DE REPARAÇÕES COLETIVAS

  1. Articular o envolvimento das organizações da sociedade civil nos processos em torno da reinterpretação da Lei de Anistia e dos pedidos de reparação coletiva, apresentando os interesses populares, desviando da burocracia de Estado a capacidade de decisão das medidas e aplicação de recursos;

  1. Pressionar o Ministério Público para estabelecimento de data limite para a modificação de logradouros e espaços públicos que façam homenagem a agentes ativos e beneficiários da Ditadura;

  2. Modificar a metodologia de responsabilizações de violações da perpetradas pela Ditadura, considerar a participação do Ministério Público do Trabalho para estruturar procedimentos de responsabilização empresarial;

  3. Cobrar a execução do processo de identificação dos remanescentes ósseos das vítimas do massacre do Araguaia;

  4. Pressionar a modificação do método de consideração das denúncias de violações advindas do campo, dada a precariedade de mobilização de provas e documentação das violações, considerando a possibilidade de pressionar à inversão do ônus da prova;

  5. Apresentar apoio público ao Ministério Público, na pessoa de Fabiana Lobo, e à Defensoria Pública, na pessoa de Fernanda Peres, pela iniciativa de judicialização da mudança de logradouros na cidade de João Pessoa.

GT 4 EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA

  1. Reafirmar o papel central da educação formal e não formal na defesa da memória, da verdade, da justiça e da dignidade humana;

  2. Contar a história do autoritarismo de forma transversal, como forma de fortalecer uma cultura democrática baseada na valorização dos direitos humanos, da diversidade cultural e da justiça social;

  3. Aplicar uma educação antifascista como eixo estruturante de nossas políticas educacionais, ancorada na formação crítica, no diálogo com a história das lutas sociais e no reconhecimento da resistência popular;

  4. Participação estratégica das Comissões da Verdade, Comitês de Memória e entidades da sociedade civil na reelaboração do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH);

  5. Fortalecer ações conjuntas entre escolas, universidades, movimentos sociais, coletivos culturais e órgãos públicos, pautadas no diálogo com os sítios e lugares de memória e nas recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade;

  6. Reafirmar nosso compromisso com uma educação que forme para a cidadania ativa, a consciência crítica e o respeito aos direitos humanos e do meio ambiente’. Educar para a democracia é educar para a vida, para a memória e para a transformação social.

GT 5 COMUNICAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE MOBILIZAÇÃO

  1. Reivindicamos que a comunicação seja tratada como eixo estratégico transversal na luta por Memória, Verdade e Justiça;

  2. Reivindicamos também que o Governo Federal considere a importância do fortalecimento de uma imprensa progressista e direcione parte das verbas públicas de publicidade e propaganda para os veículos dessa tendência, pois é inadmissível que, mesmo depois da comprovada atuação da imprensa corporativa em favor da ditadura militar e contra todas as gestões do PT e até o apoio massivo ao golpe de 2016, esses veículos continuem beneficiários da totalidade do orçamento federal para publicidade e propaganda do governo e suas estatais;

  3. Criação de um calendário de reuniões mensais a partir de maio de 2025 do GT de Comunicação para discussão de um projeto de comunicação popular articulado entre os comitês e comissões, com formação e produção coletiva de conteúdo em favor da justiça de transição;

  4. Formação de Observatórios de Comunicação para a Democracia;

  5. Realização de oficinas de midiativismo;

  6. Realização de um Seminário de Comunicação.

PELA PUNIÇÃO DE TODOS OS GOLPISTAS E FASCISTAS

DO GOLPE DE 1 DE ABRIL DE 1G64 E DE 08 DE JANEIRO DE 2023!

PELO IMEDIATO CUMPRIMENTO DAS RECOMENDAÇÕES DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, DAS COMISSÕES DA VERDADE ESTADUAIS, MUNICIPAIS E SETORIAIS!

SEM ANISTIA PARA GOLPISTA!

PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA,

PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA!

João Pessoa, 13 de abril de 2025.

SUBSCREVEM:

Comitê Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia - Alagoas Comitê Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia - Bahia Grupo Tortura Nunca Mais - Bahia
Comitê Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia - Ceará Comitê Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia - Maranhão Comitê Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia - Pará
Comitê paraibano Memória, Verdade e Justiça
Memorial da Democracia da Paraíba
Comitê de Luta por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia -  Pernambuco
Centro Cultural Manoel Lisboa de Pernambuco (CCML)
Comitê Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia - Rio Grande do Norte
Pós TV DHnet Direitos Humanos RN
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