quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Nem Justiça, nem reconciliação: reflexões sobre a Comissão Nacional da Verdade no Brasil

Renan Quinalha - São Paulo - 12/11/2015 - 17h08

A CNV foi capaz de atender, parcialmente, às demandas por verdade das vítimas sem atingir, frontal mente, Interesses dos herdeiros da ditadura.

No final de 2014, em meio a um clima de intensa polarização pós- eleitoral e de pífias manifestações por uma intervenção militar, encerraram-se os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Criada pela Lei n. 12.528/2011 e instituída efetivamente em maio de 2012 com o objetivo de apurar as graves violações de direitos humanos cometidas entre 1946 até 1988, o marco final da CNV materializou-se na entrega do relatório circunstanciado de suas atividades para a Presidenta Dilma Rousseff.

O objetivo deste texto não é fazer uma análise do extenso relatório. Antes, trata-se de fazer uma análise do processo que levou à criação da CNV à luz das determinações mais gerais da transição brasileira, dos caminhos por ela escolhidos em seu funcionamento e realizar um balanço - ainda que preliminar e influenciado pelo calor de acontecimentos tão recentes - de suas realizações e, sobretudo, de seus limites.

A busca da verdade em relação aos crimes da ditadura não começou com a CNV e tampouco se encerrou com a entrega do relatório na solenidade oficial do dia 10 de dezembro de 2014. A comissão apenas constitui um capítulo privilegiado, por um lado, da incansável luta dos familiares dos desaparecidos políticos desde o final da ditadura e, por outro, das ainda precárias políticas públicas da democracia brasileira relativas ao trabalho de memória e justiça em relação aos crimes da ditadura.
Essas lutas pela reparação histórica ficaram à margem da agenda política da redemocratização, com todas as lideranças privilegiando outras pautas e celebrando o discurso vazio da “reconciliação nacional” para a governabilidade da então “jovem e frágil” democracia.

As elites políticas que estiveram à frente da transição, apesar da mobilização popular que disputou o ritmo e a intensidade da redemocratização, entendiam que qualquer passo mais ousado no sentido de desenterrar o passado e responsabilizar os autores dos crimes da ditadura poderia resultar no rompimento da transição negociada e concretizar a ameaça de uma regressão autoritária. Um medo que se demonstrou falso e que provocou, em última instância, uma paralisia dos agentes pró-democráticos.

Desse modo, a democracia se instituiu a partir de uma empreitada de co- gestão do novo regime político, em um condomínio que se edificava mais sobre as fundações do que sobre os escombros da ditadura que se encerrava na forma de uma política gradativa de distensão e de abertura.

Nesse sentido, Florestan Fernandes assinalou com perspicácia o lema da transição: "se concedo, não cedo", como a fórmula implícita da relação democrática que a ditadura desentranhou de dentro de si mesma.
A escolha pelo caminho da impunidade, pelo esquecimento seletivo e pela política de silenciamento, feita ainda na ditadura e renovada em diferentes governos e em distintos graus durante a democracia, cobrou sua fatura: persistem práticas autoritárias e ampliam-se zonas de exceção no Brasil atual.

E essa transição à brasileira, negociada pelo alto, controlada pelas forças do regime autoritário, lenta e duradoura imprimiu suas marcas não apenas à democracia, mas também à Comissão Nacional da Verdade, cujos limites e avanços serão examinados a seguir.

Onde ficou a justiça?

Um dos temas mais críticos na passagem da faixa presidencial de Lula para Dilma era a criação de uma Comissão da Verdade. A proposta original, que constava no terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), de 21 de dezembro de 2009, era de criação de uma comissão da verdade que tivesse a dimensão de realizar - ou ao menos incentivar - alguma forma de justiça em relação aos crimes apurados.

Não à toa, constava da redação original da Diretriz 25, expressamente, a tarefa de "suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos”.

Nesse exato momento, a interpretação da Lei da Anistia (Lei n. 6683/1979) que garantia a impunidade estava sendo desafiada perante o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF n. 153, e também perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos pela iniciativa dos familiares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia (Caso Gomes Lund e outros).

Apesar de sintonizada com os padrões do direito internacional dos direitos humanos e afinada com as práticas adotadas em outros países do Cone Sul, a formulação adotada nesse documento gerou enorme celeuma, estremecendo a relação entre o governo e os setores militares em grau nunca visto desde a transição.

Diante da resistência desses setores, alguns internos ao próprio governo, corno os Ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, houve a edição, por parte do Presidente Lula, do Decreto n. 7177, de 12 de maio de 2010, alterando o PNDH-3.

Houve um recuo programático justamente nos temas de direitos humanos mais politizados e que provocavam maior tensionamento, mostrando o poder de veto dos grupos conservadores. As alterações que foram efetuadas são sintomáticas para se compreender o mandato e o contexto da Comissão Nacional da Verdade.

Uma leitura comparativa entre os textos original e final revela a supressão de expressões como "repressão ditatorial", "regime de 1964- 1985", "resistência popular à repressão", "pessoas que praticaram crimes de lesa humanidade" e "responsabilização criminai sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964 - 1985".

Esse confronto terminológico revela que o abrandamento discursivo do governo se orientou por três preocupações. A primeira é a de que as medidas de reparação fossem diluídas em um período histórico mais largo, sem identificação direta com a ditadura; a segunda era de que as violações aos direitos humanos não fossem punidas e tampouco caracterizadas como crimes contra humanidade, insuscetíveis de graça, anistia e prescrição; por fim, uma terceira preocupação foi para deslocar as medidas do campo da ação imediata para o do debate público, com uma formulação mais vaga e menos vinculante. Não por outra razão, a menção a ações de responsabilização criminal na primeira versão do texto foi substituída apenas pela responsabilização civil.

No entanto, o amplo 'consenso' pela Comissão da Verdade foi capaz de atender, parcialmente, às demandas por verdade das vítimas sem atingir, frontalmente, os interesses dos setores defensores e herdeiros da ditadura. Assim, a criação da Comissão logo se tornou ponto pacificamente aceito por todas as forças políticas representadas no Congresso Nacional.

O direito à verdade surgiu, desse modo, tardiamente em nosso país e como uma saída intermediária diante das pressões antagônicas sofridas pelo governo: por um lado, perpetuar o silenciamento e a política do esquecimento não mais era possível, dado a mobilização da sociedade e a cobrança internacional sobre o Estado brasileiro que foi condenado no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos; por outro, levar a julgamento os responsáveis pelos crimes ou mesmo atribuir maiores poderes à CNV significaria uma afronta aos setores conservadores e militares.

A despeito das diversas críticas que foram formuladas pelos familiares de desaparecidos políticos e pelas vítimas da ditadura brasileira, a Lei n. 12.528 de 2011 manteve os recuos que foram apontados, tirando a justiça do horizonte e abusando do termo “reconciliação”.
No fim, prevaleceu uma postura pragmática no sentido de aprovar o quanto antes e de qualquer jeito a Comissão, deixando alguns aspectos mais polêmicos, capazes de causar maior desgaste político, para um segundo momento, o que dificultou o trabalho da comissão, como se verá.

Saiu a justiça, sobrou a verdade?

Mais de seis meses passaram da aprovação da lei até a efetiva instalação da CNV, no dia 16 de maio de 2012, em uma cerimônia com todos os ex-presidentes da Nova República para escancarar o amplo acordo negociado. Na platéia, pouco à vontade, estavam os chefes militares que logo demonstrariam claramente o pouco apreço que nutriam pela iniciativa.

Sem consultar os familiares de desaparecidos políticos, a Presidenta nomeou pessoas de prestígio em suas trajetórias para a CNV. Algumas com pouca experiência no campo dos direitos humanos e um excesso de juristas, mas sete membros de diferentes matizes ideológicas poderiam conferir a necessária legitimidade de partida da CNV.

No entanto, justamente por esse amplo arco político e por essa notoriedade dos indicados, houve grande dificuldade para a comissão deslanchar e alcançar uma dinâmica de grupo capaz de colocar em diálogo as “diferentes comissões da verdade” que cada um deles tinha em sua mente.

Uns achavam que era necessário apurar as violências cometidas pelo “outro lado”, como se referiam aos grupos de luta armada, incorrendo em injustificável adesão à chamada “teoria dos dois demônios”, como se as Forças Armadas com todo o poder material e militar do Estado pudessem ser equiparadas com a ação de guerrilha. Outros repeliam essa perspectiva, emplacando a posição que posteriormente foi consolidada no sentido de que somente as violações de direitos humanos praticadas por agentes da ditadura fossem objeto dos trabalhos.

A CNV editou um número inexpressivo de resoluções para formalizar os entendimentos internos ao grupo e regular seu funcionamento de modo transparente para a sociedade.

A dificuldade de convergir em temas centrais implicou uma especialização de cada um dos membros com assessores próprios em determinadas agendas em seus grupos de trabalho, demorando para engrenar uma característica de colegiado.
Sem um plano de trabalho claro e uma metodologia bem definida, cada um ficou à vontade para trabalhar as pautas com as quais tinha afinidades pessoais ou profissionais. Isso significou um progressivo descolamento dos membros entre si, destituindo a atuação de unidade e de coerência.

Por óbvio, a divisão funcional do trabalho era inevitável e até necessária, mas ela acabou se impondo de modo muito precoce e pouco planejado na CNV, como uma fuga para o desafio de enfrentar as discussões coletivas entre as diferentes concepções da comissão. Essa falta de clareza foi agravada pelo modelo de coordenação rotativa, com mudanças até de secretaria-executiva em meio aos conflitos.
Além disso, a ausência de uma política de participação e de diálogo com setores da sociedade civil organizada, que exigiam debates públicos periódicos, gerou enorme desgaste para a imagem CNV, que sofria duras críticas dos familiares dos desaparecidos e dos ex-presos políticos.

As mesmas dificuldades se deram em relação a pesquisadores que pretendiam fazer uma análise dos trabalhos em curso, sem que tivessem a devida acolhida. Tal traço de contingência e de seletividade levou para o lado pessoal relacionamentos que deveriam ser mediados institucionalmente.

A desarticulação institucional e de gestão, a falta de acúmulo coletivo sobre questões elementares e a ausência de definições quanto aos processos decisórios da CNV desde o início fizeram com que conflitos entre membros, apesar de naturais e até positivos, fossem tão mal administrados internamente que terminaram com exposição negativa e enfraquecimento da própria comissão.

Exemplo disso ocorreu quanto à divergência em torno do método de trabalho e de apresentação de resultados da CNV. Enquanto uns entendiam ser fundamental dar publicidade aos relatórios parciais de pesquisa para sensibilizar a sociedade durante o processo de busca da verdade, outros entendiam ser mais efetivo o sigilo nos trabalhos para reservar ao relatório final as maiores descobertas, a fim de que este alcançasse o maior impacto possível na opinião pública.

Ambos os entendimentos têm suas razões e mereceriam um debate qualificado. Mas, ao invés disso, a falta de canais internos capazes de encaminhar essas divergências, aliada à escassez de pontos de partida minimamente consensuais dentro do grupo, culminaram com a conturbada saída de Cláudio Fonteles em junho de 2013, instaurando uma crise que chegou a repercutir mais, em determinado momento, do que o próprio trabalho da CNV.
Outra divergência, que tomou proporções enormes, dizia respeito à pertinência ou não da CNV se envolver com a discussão relativa à punição dos torturadores da ditadura. Posições públicas dos comissionados foram anunciadas em sentidos diametralmente opostos, alimentando intrigas e confusões, como a saída do jornalista Luiz Cláudio Cunha, sobre um tema sobre o qual já há condenação do Estado brasileiro da Corte Interamericana.

Esses problemas, com o afastamento por motivo de saúde de Gilson Dipp em abril de 2013, fizeram com que a CNV funcionasse durante todo o tempo com um ou dois membros a menos em relação aos sete previstos na lei, número já considerado insuficiente diante da magnitude da tarefa que lhe cabia.

Assim, a comissão demorou para engrenar e ter coesão interna. Mas teve ainda mais dificuldades para coordenar as iniciativas locais e regionais, oficiais ou da sociedade civil, de busca da verdade.

Com efeito, a proliferação de iniciativas complementares à comissão, dedicando-se a universidades, sindicatos, órgãos dê classe, entes federativos foi algo muito positivo. Contudo, a CNV não foi capaz de assumir seu papel de liderança e protagonismo no complexo nacional de comissões e comitês que surgiram. Chegou até a promover encontro e iniciativas conjuntas com algumas comissões, mas não houve uma divisão organizada de trabalho e um compartilhamento de banco de dados e de métodos de investigação.

A deficiência no diálogo ficou evidente na polarização da CNV com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, que sempre trabalhou em audiências públicas abertas. No caso da apuração do caso Juscelino Kubistchek, ficou evidente uma incapacidade de diálogo com outras comissões e pessoas interessadas no assunto, tendo chegado até o Judiciário o embate entre comissões.

Também ficou a desejar a relação interinstitucional da CNV com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia, que já detinham acervos relevantes de informações. Em especial, o Ministério Público Federal sentiu, por vezes, sua atuação ser atravessada pela CNV sem uma preocupação desta em coordenar as iniciativas coincidentes para não prejudicar as investigações criminais em andamento, como no caso do Rubens Paiva.

Mas é certo que a atuação da CNV não merece apenas críticas. Reconhecimentos e elogios também precisam ser registrados em um balanço cuidadoso.

Nunca antes em nosso país, o tema das violações de direitos humanos praticadas pelo Estado recebeu tanta atenção oficial e logrou tamanha repercussão na sociedade. Depois da CNV, uma complexa rede nacional foi constituída para garantir a efetivação do direito à verdade e isso gerou uma mobilização interessante no país.

Nesse sentido, o papel pedagógico e de educação em direitos humanos foi fundamental. Em meio à efeméride do cinqüentenário do golpe de 1964, esses agentes que orbitavam em torno da CNV organizaram eventos culturais, intervenções políticas, escrachos contra torturadores, debates em escolas dentre outras ações. Tudo isso logo após as manifestações de junho de 2013, quando os vínculos da ditadura com a repressão militarizada das polícias na ruas ficaram evidentes, permitindo um salto importante de consciência nas lutas sociais.

Ainda vale destacar que a CNV deu uma enorme contribuição para repensarmos nossa relação com o passado de violências, o que despertou, por exemplo, propostas de comissões da verdade dedicadas especificamente aos crimes da escravidão ou mesmo às chacinas e violências policiais do presente.

A CNV também demonstrou estar sensível a demandas de alguns setores marginalizados ao se abrir a temas ainda pouco explorados, conferindo novos contornos ao alcance da repressão política e, portanto, ampliando a categoria de “vítimas” da ditadura para além da resistência armada.

Isso se materializou na preocupação de tratar das vítimas invisibilizadas nas narrativas hegemônicas, tais como os indígenas, os camponeses, as mulheres por sua condição de gênero, as pessoas LGBT e outros marcadores sociais de diferença foi um avanço nas formulações sobre a reparação histórica em nosso país.

A comissão aprendeu, gradativamente e graças à pressão dos movimentos sociais, a trabalhar com transparência, realizando audiências públicas e prestando contas de suas atividades em praticamente todo o território nacional. Ela foi conseguindo cumprir com o tempo, ainda que de modo incipiente e pressionada, o papel de abrir um espaço oficial de escuta capaz de acolher e conferir legitimidade à versão das vítimas e seus familiares, recuperando dé forma mais sistemática essas memórias.

Também usou bem, ainda que poucas vezes, a prerrogativa exclusiva atribuída por lei de indicar a autoria das violações de direitos humanos, confrontando publicamente os perpetradores com as acusações e elementos de prova.

A divulgação de relatórios parciais e temáticos, prática adotada sobretudo no último ano de funcionamento, foi um passo importante na compreensão do caráter reparatório do processo de busca da verdade em si e não apenas pelos resultados eventualmente alcançados.

Com instrumentos de comunicação que se sofisticaram progressivamente, a presença da CNV nas mídias tradicionais e nas redes sociais foi-se intensificando, atingindo setores cada vez mais amplos da opinião pública. Em determinados momentos, como nas revelações sobre o assassinato de Rubens Paiva, o tema ocupou posição central dos noticiários televisivos e dos jornais impressos.

A prática não levou à perfeição, mas certamente permitiu uma melhora significativa da atuação da comissão e provocou imediatas reações, quando os limites dos trabalhos da CNV emergiram com maior nitidez.

O boicote das Forças Armadas: a verdade como inimiga

À medida que seus trabalhos avançavam, os bloqueios de interdição ao passado que foram instaurados durante a transição para uma democracia tutelada se impunham. A CNV teve de amargar as consequências de seus próprios êxitos, ainda que limitados.

“Não vou comparecer. Se virem. Não colaboro com o inimigo” escreveu o oficial da reserva José Conegundes na convocatória que recebeu para prestar depoimento perante a comissão. Por sua vez, a negativa mais elegante do general José Brant Teixeira foi acompanhada da seguintes resposta: “segundo orientação do Comando do Exército, as convocações devem partir daquela autoridade”.

O respaldo para essas atitudes veio do general Enzo Martins Peri, que exerce o Comando do Exército. Em ofício de 25 de fevereiro de 2014, ele ordenou a todas unidades do Exército que lhe encaminhassem as requisições de documentos recebidas de todos os Poderes da República.

Ele avocou para si o controle sobre o que poderia vir à tona, valendo-se de sua posição institucional como instrumento de filtro e de veto no processo de construção da verdade que depende - e muito - da colaboração das Forças Armadas.

O general baixou essa ordem logo após a CNV ter requerido ao Ministro da Defesa, Celso Amorim, a instauração de sindicância para apurar desvio de finalidade de sete instalações militares utilizadas como centros de tortura.

No entanto, meses depois, em um relatório de centenas de páginas em conclusão às sindicâncias, as Forças Armadas reincidiram no negacionismo e concluíram que “não se verificou o alegado desvio de finalidade”.

Mas ficou pior. De maneira bastante sintomática, às vésperas da entrega do relatório final da CNV, uma inspeção do MPF junto da Polícia Federal no Hospital do Exército no Rio de Janeiro localizou prontuários médicos do período da ditadura que foram ocultados das Comissões da Verdade. Na diligência, o que é mais grave, foi identificada uma pasta com nomes e fotografias dos membros da CNV.

O ofício, as sindicâncias forjadas, o boicote sistemático, as negativas cínicas, as sucessivas recusas, a vigilância sobre as comissões e as afrontas abertas apenas coroam uma postura recorrente na relação entre civis e militares na redemocratização brasileira. As Forças Armadas sempre se negaram a assumir a responsabilidade que lhes cabe pelas violências da ditadura e nunca pediram desculpas à Nação.

Essas atitudes revelam que quando a CNV começou a desafiar a tutela das corporações militares e dos setores civis saudosos da ditadura, o bloqueio se impôs. Sem condições políticas para realizar os embates necessários para avançar, a CNV se viu isolada institucionalmente e deslegitimada publicamente por um Poder Executivo omisso e um Poder Judiciário que respalda a impunidade.

Nem justiça, nem reconciliação

No momento em que aprendia a fazer o trabalho, com maior coesão interna e linha política definida, tensionando publicamente com as corporações militares e, o exíguo prazo de funcionamento da CNV se exauriu sem que o impasse com as Forças Armadas tivesse sido sequer reconhecido pelo governo.

A Presidenta Dilma, em seu discurso do dia 1o de abril de 2014, lembrou os mortos e desaparecidos, mas fez questão de ressaltar seu compromisso com os pactos e acordos da redemocratização, em clara referência à Lei de Anistia.

Ela confundiu respeito à autonomia da CNV, o que é imprescindível, com a sua própria omissão diante da crise institucional entre a comissão e as Forças Armadas, que exigia uma ação do Poder Executivo para empoderar uma iniciativa de seu próprio governo. Ao deixar essa mediação a cargo do Ministério da Defesa, que mais respalda do que submete os comandos militares, abandonou a CNV em posição de impotência e de descrédito.

Desdenhada por setores militares, quando não afrontada, a CNV teve de se legitimar por conta própria em um governo que não tomou para si o desafio de levar adiante os conflitos necessários para a apuração das graves violações de direitos humanos.

Os mesmos acordos e a lógica da governabilidade que possibilitaram a instituição da CNV de acordo com o pacto da reconciliação também selaram os limites do seu funcionamento. O que nenhum governo democrático teve força ou vontade política para fazer ficou relegado à comissão: alterar a correlação de forças com os setores que sustentaram a ditadura para aprofundar a democratização do Estado e da sociedade, submetendo as corporações militares ao poder civil.

Agora, com o fim da CNV, espera-se que seu relatório ajude a insuflar a indignação e a repulsa da sociedade às práticas de violência do passado e às posturas autoritárias desses setores ainda no presente, para que essa experiência possa se converter em melhora efetiva da qualidade de nossa democracia.

Renan Quinalha tem formação em Direito e em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu o Mestrado em Sociologia do Direito e, atualmente, cursa o Doutorado em Relações Internacionais. É membro da diretoria do Grupo de Estudos sobre internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST), do Conselho de Orientação Cultura do Memorial da Resistência e foi assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva"'. Publicou o livro intitulado "Justiça de Transição: contornos do conceito” (Dobra/Expressão Popular; 2013) e, junto com James Green, organizou o livro “Ditadura e Homossexualidades” (EdUFSCar, 2014).

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